terça-feira, 16 de novembro de 2010

Testemunho dos dedos da minha mão esquerda (conto)

Eu não posso escrever sobre mim, caso eu queira costurar alguma coisa com a linha frágil que enlaça a verdade às minhas memórias. É necessário que eu escreva, então, sob mim. À minha maneira, eu busco minhas cicatrizes que, diferentemente de tatuagens, marcam tanto o meu “eu” exterior quanto o meu “eu” interior. Partindo do pressuposto que a tatuagem é um signo da resposta “quem sou” ao exterior, a cicatriz é uma resposta do diálogo entre o meu “eu” exterior e o meu “eu” interior. E eu sou esses dois “eus”. Ao mesmo tempo que eu me chamo Kiara para o mundo, eu me chamo “Eu” para mim. Menos quando eu estou muito brava comigo mesma. Nestas ocasiões, eu me chamo como se uma terceira pessoa me habitasse. Aqui, esse não é o caso.

Para contar a história que cobre e costura esses dois “eus” – e muitos outros “eus” que conversam comigo num pequeno pedaço de tempo – eu quebrei a linha dos meus pensamentos e a desentortei enquanto eu marchava em linha pelos caminhos da linha da vida. Eu andei pelas calhas da minha mão direita, eu tropecei nas cicatrizes e eu cantei em silêncio sobre os meus “eus”. A canção me parou em mergulhos de segundos e, por causa disso, eu vi meu dedão napoleônico. Neste dia, eu descobri que as linhas que formulavam minha vida não eram lineares, mas curvas. Depois que eu descobri isso, minha cabeça começou a mudar completamente e eu pude ver minha mão esquerda e todos os meus dedos...

*

Eu nasci num dia preciso, de um mês quase preciso, de um ano impreciso, numa família muito imprecisa com sua memória. Nós habitávamos a Terra, eu acredito. Para melhor explicar, é um planeta que dizem azul, mas onde eu posso ver muito mais cores. A minha mãe era vermelha e o meu pai uma variação entre cinza e preto.

A minha mãe era uma mulher apaixonadamente religiosa. Tanto que praticamente toda noite ela batia na parede que separava seu quarto do meu, gritando: “Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!”.

Sobre o meu pai, a única coisa que eu tenho dele – além dos olhos, mas eu nunca compreendi isso – é uma foto. A minha mãe me dizia que o meu pai morreu quando eu nasci. Imagino eu, que seja por isso que a minha mãe fazia vigílias noturnas no seu quarto com pessoas diferentes. Ela era tão religiosa, que os vizinhos a chamavam de Madalena.

(Há uma coisa que eu nunca entendi sobre sua religiosidade. Por que algumas pessoas diziam que ela não podia cruzar as pernas? Isso seria porque cruzar as pernas era um pecado? A religião permite apenas fazer o sinal da cruz com a mão? E como seria fazer o sinal da cruz com as pernas?)

Um dia, passada meia-noite, eu a vi em penitência, ajoelhada com as mãos cruzadas e próximas ao seu rosto. Diante dela, um homem preto – um padre, creio eu – que acariciava sua cabeça e dizia: “Bem aventurada... bem aventurada... Oh, que paraíso! Meu anjo!”.

*

Desde os quatro anos de idade eu ia para a escola, mas quando a diretora descobriu que a minha mãe tinha convertido seu marido com as preces noturnas, a minha mãe decidiu que mudássemos para um outro lugar mais colorido. A mamãe me prometeu!

Nessa época, a fera com olhos de fogo e dentes de ferro – a guerra! – começou a nos perseguir. E, pela primeira vez, eu vi a minha mãe em penitência diante de mim. As cores de seu rosto tinham mudado.

Enquanto o mundo se tornava amarelo e branco, a minha mãe foi ficando de mais em mais cinza...

...até que um dia, quando eu estava no planeta, no meu quarto branco, eu a recebi em cinza e preto - como meu pai. Ela sorria numa revista.