segunda-feira, 11 de março de 2013

O caçador de sombras (conto premiado)



Esgotaram-se os pássaros e seus cantos fiaram-se num silêncio entrecortado por uma brisa vacilante que lamentava de vez em vez as vidas perdidas no campo de batalha. Misturado ao som ritualístico da Morte, abria-se para a plateia de um só espectador uma cortina de cheiro de sangue, que tingia o ar com notícias que chegariam desesperadoras aos ouvidos ansiosos e distantes dali.

shadow-man.jpgEle andava pelo palco formado por cadáveres e, por mais que seus passos estivessem tão pesados quanto sua cabeça, seguia o roteiro, segurando a respiração e com a espada ainda empunhada na mão. No entanto, a espada tinha a ponta virada para a terra, desenhando nela, através do sangue de outrem que escorria por sua lâmina, seu próprio caminho. Acompanhavam-no ainda as risadas dos amigos e as carícias da mulher sonhada, que em mais uma noite alentou suas esperanças de um futuro calmo. Assombrações da noite passada, tão vivas e presentes em sua mente que o faziam não esquecer do que era feita a dor.

Seus passos eram ritmados por uma música de câmara, tocada pelo órgão interno em seu peito, segundo as batidas de seu desespero seco e entalado. Assim foi seguindo, até virar trapo e tombar no chão. A boca ficou cheia de terra e sangue, que entravam também pelos seus poros. Isso não mais o incomodava. Por favor, que abaixassem os holofotes agora. Queria morrer na escuridão do último ato e se tornar eterno nas bocas dos jovens atores que viessem depois dele.

A Morte, contudo, não tem dono. Ela vem quando quer e não quando é convocada. Então, vendo-se ainda vivo, abriu os olhos. Ali era o Inferno e em breve o demônio cantaria seu nome. E pôde ouvi-lo, numa graça de Ave Maria, que arrepiou-lhe por debaixo da armadura, outrora tão brilhante quanto o próprio escudo de Aquiles.

Levantou-se, apoiando-se na espada, e seguiu o chamado que mais parecia um choro baixo, quase miado, no meio dos sons da Morte, que lhe estalava a língua como se para seduzi-lo. Revirou alguns corpos, ou eram sacos de farinha trajados de pessoas?, até deparar-se com um homem que vestia o uniforme rasgado do inimigo.

Os olhos do ator coadjuvante, numa emocionante interpretação, estavam voltados para o céu como se, por entre as roldanas, cabos de ferro, passadiços e contrarregras, ele pudesse ver um véu de estrelas cobrindo-lhe o túmulo.

O ator principal, aqui se faz necessária a explicação por questão de créditos e egos, notou que no peito rasgado do homem havia uma ferida feita por sua espada. Há incontáveis dias, num tempo perdido no espaço, seu mestre ensinou-lhe a arte de matar e assinar a presa ao mesmo tempo. E, pela primeira vez, ele se arrependeu de ver ali, inegavelmente, a sua marca no último homem vivo.

Caiu de joelhos ante a dor. Sabia matematicamente que o homem morreria, pois era o melhor soldado de seu batalhão e, quando ele empunhava uma espada, era para matar. Apesar da situação, teve que congratular o homem por ser bravo e continuar acorrentado à sua vida até o fim. Remorso misturou-se à admiração e inveja, criando umamélange que o fez segurar forte o cabo da espada.

Antes que qualquer ato pudesse ser criado, alongando mais essa cena, seu punho foi agarrado pelo homem com uma força de quem ainda tinha vida e que não se entregaria antes da hora. Reverenciou-se com despeito, afinal era ele o personagem principal.

O homem encarava-o como se o céu estivesse traçado nas linhas de seu rosto. Veio à mente a possibilidade de ter sido reconhecido como o invocador da Morte calada. E essa já vinha cheirando o cangote do homem, bebericando a sua vida em pequenos e saborosos goles, que também iam deixando-o zonzo. Um balbucio vazio, quase bêbado, tentava se equilibrar nos lábios do homem, mas caíram por terra antes de chegarem aos seus ouvidos.

Não demorou muito. Nem para ele notar que em sua mão fora colocado o retrato de uma mulher. Nem para o homem ver Deus em seus olhos e não inspirar mais.

Sob os aplausos surdos de uma plateia fantasma morria o último homem vivo.

Um grito despertou o tempo e sacudiu os pássaros, que voltaram a tecer seu luto.

Enquanto o sol ia se pondo, ele via as marcas de sangue seco em suas mãos transformarem-se em negras. Negras como o abismo diante de si, como o cheiro do seu futuro. Fechou os olhos e apertou firme os punhos doloridos e marcados. Quebraria a própria vida com aquele aperto se pudesse, mas a Morte era uma paqueradora que seguia suas próprias regras e, às vezes, parecia partidária apenas do amor platônico. Soltou a própria força sobre si, querendo sentir vida antes de morrer. Suas unhas sujas entravam-lhe na carne, fazendo-o sangrar, pela primeira vez, seu próprio sangue. Apertou mais a mão e voltou-a para o solo. Seu sangue era uma oferenda à Morte. Doce ou amargo, fosse qual fosse o sabor, que a Morte decidisse dele experimentar agora e o resto que sumisse no turbilhão das horas, engolfado pelos bicos dos críticos abutres, que nos céus já desfilavam, ao som de asas tamborins, a sua plumagem de falso luto.

As estrelas observavam aquela criatura sentada à beira do palco, provavelmente pensando se ele duraria ou não o suficiente para encontrá-la. E eles estavam mais próximos do que qualquer um poderia imaginar. Ela, a mulher por ele sonhada incontáveis vezes, estava ali, com ele, em suas mãos, sorrindo tristemente no retrato dado a outro homem.

Ele olhou para as estrelas como se tivesse entendido seu sussurro e contemplou o retrato manchado de sangue. A imagem dela queimou seus olhos por um momento. Então ela existia de fato. Não eram sonhos numa imensa cama fria. Ele acariciou o rosto gelado dela. Era sua última visão da vida antes da Morte. Agora seres mortos faziam seu caminho por onde passava, prontos para ajudá-lo a não mais ser. Não poderia nunca mais voltar à sua velha vida, ao seu velho eu de atorzinho desconhecido. Ele também estava morto, apenas seu corpo é que não sabia disso, pois era regularmente possuído por outros que não ele. Não se diria um sobrevivente. Era apenas uma besta vivente caçando sombras, perseguindo a Morte, até ela dele se encantar e resolver entregar-se a ele como a um amante, deixando-se entrelaçarem numa explosão definitiva.

Esperar-se-iam ainda séculos de atos e desatados destinos para que esse dia acordasse na memória de um autor. Um grito de esperanças e sonhos quebrantados, começado muitos séculos antes, quando os seres nem nome tinham e o título ainda não era O Caçador de Sombras. Por enquanto, não havia mais texto nas páginas do roteiro. Tudo em branco. As luzes desse ato foram apagadas. O palco verteu-se em escuridão. As cortinas foram fechadas e por fim retiradas para lavagem. Mesmo assim, ainda ouvia uma espécie de ovação ao longe. E o guerreiro, de volta à sua imensa cama fria, com lençóis de áspero cetim cor de sangue e terra, caçava mais uma sombra dentro de si. Esgotaram-se os sonhos com a mulher amada. Estava apenas à espera da Morte, pronto para enlaçar-lhe por entre as pernas e domá-la definitivamente, fazendo-a sua em meio às sombras com as quais ela tanto gostava de provocá-lo. O que pareceu ter acontecido por ínfimos segundos. A Morte chegou perto de dar-se por vencida, mas era apenas um truque para requentar a relação.

Chamou-lhe o nome para que abrisse os olhos e emergisse de si desembocando num clarão branco que quase o cegou. Foi penetrando nessa branquidão dolorosa, caçando sombras que sobre ele se inclinavam, e pacientemente deixando que as assombrações se transformassem, ganhando os contornos de uma enfermeira a lhe sorrir numa triste alegria, coisa que só boas atrizes eram capazes de fazer. Era um sorriso extremamente fotogênico, notou.

sexta-feira, 18 de março de 2011

QUINAU

Num revoltão estava decidido: iria morrer hoje. Não havia necessidade de conformação ou qualquer outro subterfúgio para se convencer disso. Era mais persistente que a morte e dela já se professava inseparável parceiro de quizomba. Ele mesmo havia assinado o contrato e ainda, à título de garantia, rubricara cada página, o que levou quase uma semana para se firmar. Garantia que não havia sido depois de um jogo de pôquer contra o Fausto do Pinéu, nem ante uma majestosa bebedeira como as da juventude, que acabaram lhe desgastando o fígado e os relacionamentos amorosos. Era a modesta e melódica morte, óbito, falecimento, acabamento, travessia, defuntação, fenecimento, desencarnação, passamento, perecimento, término ou, melhor dizendo, o simples fim com um imenso ponto final.

Preparou-se com todo cuidado, esmero, como no dia dos seus casamentos. Apesar dessa ser a noiva mais paciente que possuíra, não queria fazê-la esperar mais do que os oitenta e dois anos de cadeira que lhe dera. Lustrou os sapatos a ponto de transformá-los em negros reflexos distorcidos que lembravam um sentimento moroso, assíduo visitador noturno. Calçou-os, gemendo algumas notas de reprovação. Nem os pés conseguiram fugir da velhice.

Diante de um decrépito espelho, que fazia questão de lhe mostrar que o tempo galopava nele, criando rugas por debaixo das patas de seu cavalo, abotoou a camisa engomada e ajeitou a gravata borboleta. Teve que puxar um pouco o pescoço para conseguir fechar os últimos botões da camisa e depois acertar a gravata. Não achou deprimente ter que ajeitar a pele que pendia dos ossos; sua noiva não era tão exigente assim. Vestiu o paletó com uma certa dificuldade. Esticar os braços era demasiado difícil, principalmente, depois do acidente de carro. Haviam lhe dito que a partir de uma certa idade não poderia mais dirigir, não ouviu e PUMBA! Sem carro e mais imobilizado do que o tempo já havia lhe deixado. E para piorar, os parentes a sua volta resmungando e esbravejando uma revolta que não entendia. O acidente tinha sido com ele, então, por que os outros reclamavam como se tivessem sido vítimas? Acusava sempre as mulheres de exageradas, porém, dessa vez, até o filho mais velho se juntou ao coro-do-inferno “eu-já-não-te-disse?”. Isso lhe lembrava a infância, menino de interior, subindo em árvores e caindo que nem jaca, todo ralhado pela queda e pelas mãos da mãe por tê-la desobedecido. Até que a vida foi divertida.

Soltou um olhar despreocupado ao espelho, de quem nem podia reclamar tanto assim, nem mesmo daquela acusativa barriga que se fazia tão presente. Que barrigão, meu velho! Ela apontava em direção a uma época tão viva que podia lambê-la e senti-la ainda quente a derreter na mente, docinha. Ele e Nora, a primeira esposa, mãe de seu primeiro filho, seu primeiro grande amor. A cena ressurgiu das entranhas: noite, quarto-e-sala da Barata Ribeiro, sexto mês de gravidez, o jovem casal comparando barrigas diante do espelho. Riam e riam como se a felicidade estivesse ali, em volta deles, pronta para ser abraçada e amaciada por entre beijos e carícias.

A imagem foi amargando até ficar turva. Eram lágrimas que caíam de seus olhos? Nem se lembrava da última vez que chorou. Talvez tivesse sido quando o primeiro neto nasceu. Quem diria que a mirrada Silvinha conseguiria dar a luz a tão robusto rapazote? Emocionado, fugira para um canto do hospital para chorar sem vistas. Era macho, aprendera com o pai que machos não choram, em público. A segunda esposa e já ex na época, escândalo na família: a palavra impronunciável naqueles tempos, Rômola, veio atrás achando que fugira para acender um charuto. O médico o proibira e ela, na sua potência italiana, queria garantir que seguisse as ordens. Mulher mandona, essa Rômula. Quando o encontrara ficara quieta. Apenas o abraçara, enfiando a cabeça dele por entre seus seios. Ali mesmo, num quartinho estranho, fora concebido o quarto filho, o Raspinha, como era carinhosamente chamado. Tentaram refazer a vida de onde pararam, mas essa já havia alargado as pernas e andara mais do que os passos que os dois poderiam dar. Não conseguiram ficar juntos por mais de um ano. Gênios incompatíveis retalhados pela sombra de Janete, colcha que ainda os cobria, onipresente e onipotente como quanto o dia em que a vira rebolando pelo calçadão num biquíni que ficaria pequeno até na filha Martina, de 5 anos na época.

Jovem, corpo duro e esguio, recentemente formado para os delírios noturnos dos marmanjos. Quando mergulhava no mar, seus cabelos longos e loiros faziam o contorno de suas costas, seu biquíni de tecido mole grudava contra o corpo. Ao saber, pelo porteiro, que ela fazia ponto com os amigos numa lanchonete perto de casa, começara a levar Martina para tomar sorvete no lugar, aos domingos, religiosamente. Nem mesmo quando a menina estava adoentada deixava de ir. Pregava por todo prédio que era besteira do médico e da esposa, e carregava a menina febril, deixando-a comer quantas bolas quisesse desde que ficasse quietinha diante daquela adoração carola. Queria aproveitar aquelas tardes para namorar os gestos, a voz, o corpo de Janete, até o seu sorvete derreter e Martina se empanturrar, o que gerava constantes brigas em casa na hora do jantar.

Ah, que amante! Que beijos! Ela era a melhor mulher que tivera, mesmo que só em pensamentos. Nora era boa, mas era paixão, então, isso a tornava boa. Rômola era fogosa, mas depois que virara mãe, dizia-se católica e fazia-se de santa. Mas Janete... era para toda hora, em todo lugar... Comia-a por centímetro quadrado.

Certo dia, Aleluia!, sentira-se sem pedaço, mastigado por um sorrisinho que o deixara intrigado por mais de uma semana. Tinha total conhecimento que o único interesse de Janete era em seu dinheiro, nos presentes caros que ela lhe passara a choramingar. Não se importava. A mocidade é assim mesmo! Foi triste quando lhe trocara por um capitão do exército. Na época eles estavam em alta, até no governo. Só nessa época maldisse a política. Fora-se sem deixar nenhum beijinho de recordação. O maior presente que recebera dela foi uma olhadela controlada no relógio. Mas que olhadela, mas que corpo, hein! Perdia as palavras quando tentava explicá-lo para si, mesmo anos depois. Tivera, então, que se conformar nos braços de Rosa. Achava que fora babá de Martina e Silvinha. Não tinha certeza. Mas ela sempre estava lá, na cozinha, no quartinho dos fundos, na garagem... fora despedida e ele também.

Fechou a porta do pequeno apartamento. Maior do que o de solteiro, menor do que o de casado. O que aquelas paredes já viram! Quantos seios, quantas brigas e tapas, quantas discussões de futebol e quantos tangos de vitrola! Era um apaixonado por tango desde a juventude, ainda jovem médico do interior. Quem lhe ensinara foi Amaltea. Por entre os lençóis de cetim vermelho dela dançavam a noite toda ao som de Gardel. Não era sua primeira mulher, mas era a primeira profissional. O quanto aprendera nos braços dela! Coisas que ruborizavam até mesmo o Diabo, paternidade que Amaltea não negava quando acusada por alguma senhoura de Bíblia na mão.

Tirou a chave do bolso para trancá-la. Estavam tendo muitos assaltos no prédio ultimamente, em toda a região, na verdade. O mundo está ficando violento, meu velho! Ainda podia tocar as épocas em que dirigia seu conversível com Rômola ao lado e as crianças no banco de trás pulando e gritando no carro novo do papai sem medo de assalto algum. Era o melhor carro que tivera e o que mais dor deu ao ter que se desfazer. A única pinicada que Janete deixou em sua memória. Seu conversível se tornara dívidas em lojas e jantares. Mas valeu... ah, se valeu, mesmo que por uma olhadela.

Riu. Para que trancar? Que levassem tudo! A televisão de LCD que o filho mais velho lhe deu para ver os jogos do Botafogo, não que valesse a pena, ultimamente; o radio de CD, nunca soube mexer direito nisso; o forno de microondas; até mesmo o notebook, que ganhara para jogar Paciência e para o qual paciência era tudo que faltava. Só esperava que não levassem sua vitrola e os discos. O Raspinha, que era DJ, há muito queria aquela coisa velha. Esse seu caçula o divertia muito; com ele podia falar abertamente de música e de mulheres, duas paixões comuns.

O porteiro veio lhe falar. Conheciam-se há mais de 20 anos! Era domingo e o elevador social estava pifado e não conseguia chamar um técnico para consertar. Síndico. Ninguém sente saudades de síndico, mas com certeza Severino sentiria. Talvez fosse até o único que chorasse abertamente em seu enterro, fiel Sancho. Rômola poderia também soltar algumas lágrimas, mas seriam todas em meio a flores jogadas contra o caixão e esbravejares num italiano que ele nunca entendera.

Às vezes, depois do serviço, iam ele e Severino para o bar da esquina beber uma loirinha e dar em cima das jovenzinhas que por eles passavam. Fora Severino que uma vez o salvou. Uma úlcera mal instalada durante uma cantada. Levara-o ao hospital e ficou com ele até a família chegar para reclamar. Deu um sorrisinho e um tapinha nos ombros de Severino. Seu bom amigo não iria pará-lo agora. Ninguém podia. Era praticamente fato consumado.

Atravessou a rua com um cuidado, olhando para os lados, que acabou fazendo-o rir. Pegou um táxi e pediu que o levasse ao Arpoador. No carro foi deixando a cidade passar por seus olhos, lembrando-se de como foi chegar na época que táxi era sinônimo de bonde. Uma imagem de Jesus balançava no retrovisor do taxista. Devia ser evangélico, todos estavam se tornando evangélicos, até o Severino! Perdeu o companheiro de bar por aquele ser de cara séria e pregações estranhas sobre “amar ao próximo como a si mesmo.” Ah, isso, com certeza, fizera. E amara a muitas, mas tinha certeza que não ia encontrar o cara do manto azul.

Desde o início não se deram bem, quando ele ainda era coroinha do frei Inácio. A mãe achava que o menino tinha o diabo no corpo, e a avó, católica fervorosa que só não alegava ser como a Imaculada Conceição porque o avô fazia questão de ter quase que um filho por ano, convencera-a de que se ele servisse à Deus na Igreja, estaria tudo bem. Por pouco não fora excomungado antes mesmo da primeira comunhão. O frei descobrira que roubava uns trocados da caixinha da igreja para tomar limonada e comer os doces da Dona Zica com um coroinha. O quanto sentiu aquela heresia na própria pele! Isso não o impediu, contudo, de continuar suas “empreitadas em favor do Demo”, como dizia a avó se benzendo toda. Coroinha, comia as hóstias escondido e chegara a beber todo o vinho da missa a ponto dos pais encontrarem-no caído de bêbado dentro do confessionário. Vara de marmelo fora pouco.

Chegaram à praia de Ipanema. Pediu ao taxista que parasse antes mesmo de atingir o Arpoador. Queria ir andando pelas areias, subir na pedra e de lá aos abraços do mar. Deu em dinheiro mais do que a corrida pedia. Generosidades de última hora? Que nada! O que faria com o troco? Não era essa a moeda corrente no fundo do mar.

Respirava fundo o ar, enchendo todos os pulmões de mar, enquanto caminhava com a calma de quem não iria morrer. Foi se lembrando de quando chegou no Rio, jovem, médico e recém-casado. Nora quase chorou quando viu o mar pela primeira vez. Foram felizes, né, Norinha? Sorriu. E depois desatou a chorar. Lágrimas que lhe fizeram rir. Saudades de sentir! Sentir o que não sentia mais: vida. Na hora da sua morte sentia a vida e isso lhe parecia tão estranho, que dava vontade de ligar para alguém contando. Mas não havia mais ninguém para contar, todos seus amigos morreram e ainda fizera questão de deixar o celular em casa para que ninguém o atrapalhasse e cortasse a sua certeza. Odiava aquele aparelho que vivia tocando e ele nunca ouvia. Sempre era preciso alguém pará-lo na rua para avisar que o celular estava tocando. Detestável, idéia do filho mais velho, sempre ele, sempre o preocupado e responsável. Puxara a mãe, Nora também era sim. Mas nela havia uma delicadeza que mais ninguém no mundo podia ter. Era impossível, insuportável de pensar mais nisso.

CIPRESTE

Exéquias foram tomadas


abaixo do cipreste negro fui enterrado


o silêncio e a escuridão adornam-me


a morte respira fúnebre sobre a minha face fria


a cada inseto que me vê como o prato do dia


alguém descobre a verdade sobre mim


vivo pouco minha vida vil e materialista


sem amor, sem dignidade


agora, com uma bala em meio peito,


jazo na terra fria


infeliz e solitário


apenas contemplado


por um cipreste solidário.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Soul’s Chant (poesia em inglês)


“In the transparent Wind I held you”,

sung his soul many many times ago.

From above, ignorant of its meaning,

he has received new greening.

Sometimes, at night, the Moon shines,

answering his hearts whines.

Soon his hands won’t be empty

and his soul will find reply

in a woman’s foreigner eyes.

Inspired by profetic lights,

shadows are becoming shades

and lights are coloring his afraids,

showing how the world is great.

But he is anxious for fufillement,

as kisses are blooming in his hopes.

As sepia dreams appears in plain day,

haunting him about his broken souls,

for her, his inner sentiments plays

new lyrics in old melodies far away.

Still, he searches her smile in each smile he sees.

Some day he is going to listen to the sea

and wake up knowing finally who is she.

He’ll go after his beloved dream

in each woman he finds in front of him.

After many windy smiles in blank tease,

his eyes will be bleached by any breeze.

Once or twice he’ll silently ask her

to love him still - wherever she is,

to remember him when she smiles

- whatever she does, whenever she is.

He can’t speak the Moon’s language,

he can’t remember why the wall between them,

yet, he continues with his famous chant

hoping she can hear it, even ten years then.

By his bleached eyes he will be recognized,

and she’ll be seen as the cradle for his soul

through written pages thrown at the ocean

flowing between them, though.

HOMO PAPYRUS (conto)

Estão ambos. Sem saber quem diante de quem. Um: animal, mamífero, racional (nem sempre), homo sapiens. Outro: vegetal (?), artificial, potencial, papyrus.

Um diante do outro. Des-Construindo-sed. Ruínas de si. Monumentos de outrem. Vão se re-velando por debaixo de um gigante véu entre mundos. Uma fronteira fina. Frágil. Quase invisível. Às vezes. Perceptível. Apenas sob o balbuciar do externo.

Nem sempre suficiente como é. Pode sufocar. Peso mítico. Antecessores. Algozes de outrem. Pode faltar também. Puxa-se de um lado. Puxa-se de outro. Alguma coisa acaba ficando de fora. E isso perturba. Reviram-se estrelas no céu noturno. Sóis cruzam o dia. E continua impassível. Mudo ante o próprio falatório. Inflexível perante o grande show de contorcionismo dentro (e fora) da sua estrutura interna. É esse um véu tecido de letras malabaristas. Todo um alfabeto circense. Que faz da leitura, picadeiro. Do leitor, palhaço (gracinhas à parte). Geram-se, assim, mais e mais palavras. Mágica. Mundos são compostos. Tão diversos. Tão frágeis. Tão reais. E, por mais que este véu seja perseguido, a mais fina brisa pode levantá-lo e com o mais terrível tornado, nem se arrepiar.

Enquanto seus olhos o perseguem de fora para dentro (de dentro para fora) as letras vão deslizando pela página. Cobrem a superfície fina do papel quase por completo. Falta pouco. Faz o mesmo movimento linear. Indo. Até o fim. E
voltando. A cada frase. Da esquerda para direita. Num compasso orquestrado quase que somente por uma respiração vaga. Distante. Aludindo ao fato de existir ainda um mundo além do descrito na página branca. Mas não repara nisso. Está compenetrado para saber como vão terminar as linhas. Elas se seguem em Courier New 13, espaçamento 1.5. Ainda não nota para onde está sendo levado. Até que vai se deparar com a última inscrição na folha. Quase no fim. Poucas linhas de terminar.


Pende da folha, à parte, ovelha desgarrada, idéia fragmentada, depois de :



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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Conversa de Pai e Filha (poesia/conto)


-Pai, vou me casar.
Pensou em divórcio,
nas lágrimas da traição,
na perda de uma vida recém-constituída.

-Pai, vou me casar.
Ficou quieto.
Rodou os olhos.
Perguntou:
-Quanto custa?

-Pai, vou me casar.
Sorriu para a filha.
Lágrimas em seus olhos.
Ela crescera e nem notara!

-Pai, vou me casar.
Quem era o cafajeste que tiraria o seu bebê de casa?
Qual o nome do pilantra?
O que fazia da vida?
Por que escolheu a SUA filhinha?

-Pai, vou me casar.
Mexeu no bigode.
Abriu a boca.
Olhos firmes:
-Não.

-Pai, vou me casar.
Pegou as mãos dela.
Olhou em seus olhos:
-Tem certeza disso, meu amor? Olha sua mãe e eu...

-Pai, vou me casar.
Não soube qual dessas atitudes tomar.
Abaixou o jornal.
Notou a esposa no canto da sala.
Escorregou pela cadeira.
Preferiu apenas dizer:
-Parabéns!