sexta-feira, 18 de março de 2011

QUINAU

Num revoltão estava decidido: iria morrer hoje. Não havia necessidade de conformação ou qualquer outro subterfúgio para se convencer disso. Era mais persistente que a morte e dela já se professava inseparável parceiro de quizomba. Ele mesmo havia assinado o contrato e ainda, à título de garantia, rubricara cada página, o que levou quase uma semana para se firmar. Garantia que não havia sido depois de um jogo de pôquer contra o Fausto do Pinéu, nem ante uma majestosa bebedeira como as da juventude, que acabaram lhe desgastando o fígado e os relacionamentos amorosos. Era a modesta e melódica morte, óbito, falecimento, acabamento, travessia, defuntação, fenecimento, desencarnação, passamento, perecimento, término ou, melhor dizendo, o simples fim com um imenso ponto final.

Preparou-se com todo cuidado, esmero, como no dia dos seus casamentos. Apesar dessa ser a noiva mais paciente que possuíra, não queria fazê-la esperar mais do que os oitenta e dois anos de cadeira que lhe dera. Lustrou os sapatos a ponto de transformá-los em negros reflexos distorcidos que lembravam um sentimento moroso, assíduo visitador noturno. Calçou-os, gemendo algumas notas de reprovação. Nem os pés conseguiram fugir da velhice.

Diante de um decrépito espelho, que fazia questão de lhe mostrar que o tempo galopava nele, criando rugas por debaixo das patas de seu cavalo, abotoou a camisa engomada e ajeitou a gravata borboleta. Teve que puxar um pouco o pescoço para conseguir fechar os últimos botões da camisa e depois acertar a gravata. Não achou deprimente ter que ajeitar a pele que pendia dos ossos; sua noiva não era tão exigente assim. Vestiu o paletó com uma certa dificuldade. Esticar os braços era demasiado difícil, principalmente, depois do acidente de carro. Haviam lhe dito que a partir de uma certa idade não poderia mais dirigir, não ouviu e PUMBA! Sem carro e mais imobilizado do que o tempo já havia lhe deixado. E para piorar, os parentes a sua volta resmungando e esbravejando uma revolta que não entendia. O acidente tinha sido com ele, então, por que os outros reclamavam como se tivessem sido vítimas? Acusava sempre as mulheres de exageradas, porém, dessa vez, até o filho mais velho se juntou ao coro-do-inferno “eu-já-não-te-disse?”. Isso lhe lembrava a infância, menino de interior, subindo em árvores e caindo que nem jaca, todo ralhado pela queda e pelas mãos da mãe por tê-la desobedecido. Até que a vida foi divertida.

Soltou um olhar despreocupado ao espelho, de quem nem podia reclamar tanto assim, nem mesmo daquela acusativa barriga que se fazia tão presente. Que barrigão, meu velho! Ela apontava em direção a uma época tão viva que podia lambê-la e senti-la ainda quente a derreter na mente, docinha. Ele e Nora, a primeira esposa, mãe de seu primeiro filho, seu primeiro grande amor. A cena ressurgiu das entranhas: noite, quarto-e-sala da Barata Ribeiro, sexto mês de gravidez, o jovem casal comparando barrigas diante do espelho. Riam e riam como se a felicidade estivesse ali, em volta deles, pronta para ser abraçada e amaciada por entre beijos e carícias.

A imagem foi amargando até ficar turva. Eram lágrimas que caíam de seus olhos? Nem se lembrava da última vez que chorou. Talvez tivesse sido quando o primeiro neto nasceu. Quem diria que a mirrada Silvinha conseguiria dar a luz a tão robusto rapazote? Emocionado, fugira para um canto do hospital para chorar sem vistas. Era macho, aprendera com o pai que machos não choram, em público. A segunda esposa e já ex na época, escândalo na família: a palavra impronunciável naqueles tempos, Rômola, veio atrás achando que fugira para acender um charuto. O médico o proibira e ela, na sua potência italiana, queria garantir que seguisse as ordens. Mulher mandona, essa Rômula. Quando o encontrara ficara quieta. Apenas o abraçara, enfiando a cabeça dele por entre seus seios. Ali mesmo, num quartinho estranho, fora concebido o quarto filho, o Raspinha, como era carinhosamente chamado. Tentaram refazer a vida de onde pararam, mas essa já havia alargado as pernas e andara mais do que os passos que os dois poderiam dar. Não conseguiram ficar juntos por mais de um ano. Gênios incompatíveis retalhados pela sombra de Janete, colcha que ainda os cobria, onipresente e onipotente como quanto o dia em que a vira rebolando pelo calçadão num biquíni que ficaria pequeno até na filha Martina, de 5 anos na época.

Jovem, corpo duro e esguio, recentemente formado para os delírios noturnos dos marmanjos. Quando mergulhava no mar, seus cabelos longos e loiros faziam o contorno de suas costas, seu biquíni de tecido mole grudava contra o corpo. Ao saber, pelo porteiro, que ela fazia ponto com os amigos numa lanchonete perto de casa, começara a levar Martina para tomar sorvete no lugar, aos domingos, religiosamente. Nem mesmo quando a menina estava adoentada deixava de ir. Pregava por todo prédio que era besteira do médico e da esposa, e carregava a menina febril, deixando-a comer quantas bolas quisesse desde que ficasse quietinha diante daquela adoração carola. Queria aproveitar aquelas tardes para namorar os gestos, a voz, o corpo de Janete, até o seu sorvete derreter e Martina se empanturrar, o que gerava constantes brigas em casa na hora do jantar.

Ah, que amante! Que beijos! Ela era a melhor mulher que tivera, mesmo que só em pensamentos. Nora era boa, mas era paixão, então, isso a tornava boa. Rômola era fogosa, mas depois que virara mãe, dizia-se católica e fazia-se de santa. Mas Janete... era para toda hora, em todo lugar... Comia-a por centímetro quadrado.

Certo dia, Aleluia!, sentira-se sem pedaço, mastigado por um sorrisinho que o deixara intrigado por mais de uma semana. Tinha total conhecimento que o único interesse de Janete era em seu dinheiro, nos presentes caros que ela lhe passara a choramingar. Não se importava. A mocidade é assim mesmo! Foi triste quando lhe trocara por um capitão do exército. Na época eles estavam em alta, até no governo. Só nessa época maldisse a política. Fora-se sem deixar nenhum beijinho de recordação. O maior presente que recebera dela foi uma olhadela controlada no relógio. Mas que olhadela, mas que corpo, hein! Perdia as palavras quando tentava explicá-lo para si, mesmo anos depois. Tivera, então, que se conformar nos braços de Rosa. Achava que fora babá de Martina e Silvinha. Não tinha certeza. Mas ela sempre estava lá, na cozinha, no quartinho dos fundos, na garagem... fora despedida e ele também.

Fechou a porta do pequeno apartamento. Maior do que o de solteiro, menor do que o de casado. O que aquelas paredes já viram! Quantos seios, quantas brigas e tapas, quantas discussões de futebol e quantos tangos de vitrola! Era um apaixonado por tango desde a juventude, ainda jovem médico do interior. Quem lhe ensinara foi Amaltea. Por entre os lençóis de cetim vermelho dela dançavam a noite toda ao som de Gardel. Não era sua primeira mulher, mas era a primeira profissional. O quanto aprendera nos braços dela! Coisas que ruborizavam até mesmo o Diabo, paternidade que Amaltea não negava quando acusada por alguma senhoura de Bíblia na mão.

Tirou a chave do bolso para trancá-la. Estavam tendo muitos assaltos no prédio ultimamente, em toda a região, na verdade. O mundo está ficando violento, meu velho! Ainda podia tocar as épocas em que dirigia seu conversível com Rômola ao lado e as crianças no banco de trás pulando e gritando no carro novo do papai sem medo de assalto algum. Era o melhor carro que tivera e o que mais dor deu ao ter que se desfazer. A única pinicada que Janete deixou em sua memória. Seu conversível se tornara dívidas em lojas e jantares. Mas valeu... ah, se valeu, mesmo que por uma olhadela.

Riu. Para que trancar? Que levassem tudo! A televisão de LCD que o filho mais velho lhe deu para ver os jogos do Botafogo, não que valesse a pena, ultimamente; o radio de CD, nunca soube mexer direito nisso; o forno de microondas; até mesmo o notebook, que ganhara para jogar Paciência e para o qual paciência era tudo que faltava. Só esperava que não levassem sua vitrola e os discos. O Raspinha, que era DJ, há muito queria aquela coisa velha. Esse seu caçula o divertia muito; com ele podia falar abertamente de música e de mulheres, duas paixões comuns.

O porteiro veio lhe falar. Conheciam-se há mais de 20 anos! Era domingo e o elevador social estava pifado e não conseguia chamar um técnico para consertar. Síndico. Ninguém sente saudades de síndico, mas com certeza Severino sentiria. Talvez fosse até o único que chorasse abertamente em seu enterro, fiel Sancho. Rômola poderia também soltar algumas lágrimas, mas seriam todas em meio a flores jogadas contra o caixão e esbravejares num italiano que ele nunca entendera.

Às vezes, depois do serviço, iam ele e Severino para o bar da esquina beber uma loirinha e dar em cima das jovenzinhas que por eles passavam. Fora Severino que uma vez o salvou. Uma úlcera mal instalada durante uma cantada. Levara-o ao hospital e ficou com ele até a família chegar para reclamar. Deu um sorrisinho e um tapinha nos ombros de Severino. Seu bom amigo não iria pará-lo agora. Ninguém podia. Era praticamente fato consumado.

Atravessou a rua com um cuidado, olhando para os lados, que acabou fazendo-o rir. Pegou um táxi e pediu que o levasse ao Arpoador. No carro foi deixando a cidade passar por seus olhos, lembrando-se de como foi chegar na época que táxi era sinônimo de bonde. Uma imagem de Jesus balançava no retrovisor do taxista. Devia ser evangélico, todos estavam se tornando evangélicos, até o Severino! Perdeu o companheiro de bar por aquele ser de cara séria e pregações estranhas sobre “amar ao próximo como a si mesmo.” Ah, isso, com certeza, fizera. E amara a muitas, mas tinha certeza que não ia encontrar o cara do manto azul.

Desde o início não se deram bem, quando ele ainda era coroinha do frei Inácio. A mãe achava que o menino tinha o diabo no corpo, e a avó, católica fervorosa que só não alegava ser como a Imaculada Conceição porque o avô fazia questão de ter quase que um filho por ano, convencera-a de que se ele servisse à Deus na Igreja, estaria tudo bem. Por pouco não fora excomungado antes mesmo da primeira comunhão. O frei descobrira que roubava uns trocados da caixinha da igreja para tomar limonada e comer os doces da Dona Zica com um coroinha. O quanto sentiu aquela heresia na própria pele! Isso não o impediu, contudo, de continuar suas “empreitadas em favor do Demo”, como dizia a avó se benzendo toda. Coroinha, comia as hóstias escondido e chegara a beber todo o vinho da missa a ponto dos pais encontrarem-no caído de bêbado dentro do confessionário. Vara de marmelo fora pouco.

Chegaram à praia de Ipanema. Pediu ao taxista que parasse antes mesmo de atingir o Arpoador. Queria ir andando pelas areias, subir na pedra e de lá aos abraços do mar. Deu em dinheiro mais do que a corrida pedia. Generosidades de última hora? Que nada! O que faria com o troco? Não era essa a moeda corrente no fundo do mar.

Respirava fundo o ar, enchendo todos os pulmões de mar, enquanto caminhava com a calma de quem não iria morrer. Foi se lembrando de quando chegou no Rio, jovem, médico e recém-casado. Nora quase chorou quando viu o mar pela primeira vez. Foram felizes, né, Norinha? Sorriu. E depois desatou a chorar. Lágrimas que lhe fizeram rir. Saudades de sentir! Sentir o que não sentia mais: vida. Na hora da sua morte sentia a vida e isso lhe parecia tão estranho, que dava vontade de ligar para alguém contando. Mas não havia mais ninguém para contar, todos seus amigos morreram e ainda fizera questão de deixar o celular em casa para que ninguém o atrapalhasse e cortasse a sua certeza. Odiava aquele aparelho que vivia tocando e ele nunca ouvia. Sempre era preciso alguém pará-lo na rua para avisar que o celular estava tocando. Detestável, idéia do filho mais velho, sempre ele, sempre o preocupado e responsável. Puxara a mãe, Nora também era sim. Mas nela havia uma delicadeza que mais ninguém no mundo podia ter. Era impossível, insuportável de pensar mais nisso.

CIPRESTE

Exéquias foram tomadas


abaixo do cipreste negro fui enterrado


o silêncio e a escuridão adornam-me


a morte respira fúnebre sobre a minha face fria


a cada inseto que me vê como o prato do dia


alguém descobre a verdade sobre mim


vivo pouco minha vida vil e materialista


sem amor, sem dignidade


agora, com uma bala em meio peito,


jazo na terra fria


infeliz e solitário


apenas contemplado


por um cipreste solidário.