quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Maria Odila (conto)

Os dedos procuravam, procuravam, procuravam por um corpo onde não havia nenhum. Cansados pela busca falha, caíram esticados sobre o colchão. Não havia mais esperanças para ela. Sua pele parecia desprender-se de seus ossos a cada ano que passava. Suas unhas curtas acentuavam um ar de destrato a cada primavera que se partira. Manchas nasciam enquanto sonhos de desfaleciam. E ao tocar do inverno, ela tornara-se apenas uma mão a se ter vergonha. Contraiu-a, puxando-a para debaixo do lençol, junto ao corpo.

As pernas podiam sentir aquele entreamento de experiência de vida mais profundo. Canais e vias que diziam poder representar seu futuro mais feliz quando jovem. Angustiava-se só de pensar em tudo que se arrependera. Se pudesse voltaria atrás. Mas no tempo não havia marcha ré. Teria de esperar novas oportunidades. Contudo, estas nunca lhe foram dadas.

As pernas suplicaram uma hora para fazerem exercícios. Sua cabeça pedira mais descanso. Quem sabe descansar da vida? Preferia não ouvir esse tipo de pensamento. Há muito acreditava tê-lo deixado perdido no fundo de alguma caixa.

Os pés tocaram o chão de madeira. Não estava frio nem quente. Mesmo assim, o medo de se resfriar fez seus pés tatearem os chinelos. Enfim, estava com o mundo aos seus pés inchados. Deu dois passos para longe da cama, quase cambaleando, e caiu numa cadeira. Seu corpo não queria mais mestre, numa revolta incessante. Pendeu a cabeça para trás. Suas madeixas longas e escuras caíram pelo espaldar da cadeira, confundindo-se com o brocado marrom. Os olhos escuros abriram-se e nada tinham a observar, fechando novamente. Eram olhos oblíquos, que acabaram desgastando-se com agruras, não possuíam mais brilho. O rosto acentuara o esqueleto do crânio, perdera o viço, a maciez. Apenas o nariz reinava intocado pelo modelar natural. Altivo e protuberante, vencedor de toda a vida.

Uma voz rompeu o silêncio da manhã. Reflexo da que sempre tivera que obedecer. Ergueu a cabeça na direção da porta do quarto. Uma barreira que poderia ser eterna, mas que ia perdendo sua função enquanto a maçaneta girava.

Não se mexeu. A camisola branca despejava brancura sobre seu corpo magrelo, transformando-a numa aparição aos olhos de quem entrasse no quarto. A cabeça pendeu para trás novamente e ela apenas respirou fundo. Os olhos tocaram o teto. Via figuras de flores moldadas em sancas. Frias e paradas no tempo, como ela gostaria de estar agora. “Maria Odila, toda manhã chamei por você. Ainda não se levantou? Que pensa que está fazendo ainda aí? Está me ouvindo? Maria Odila, me ouve? Maria Odila...” As flores voltaram a exalar um perfume sem igual. O sol ficava mais vivaz em torno de sua vida. As pernas ganharam ligeireza. Podiam percorrer os campos verdes, pular atrás das asas aquareladas das borboletas, bailar pelos ares em busca de mais vida. Tudo resumia-se num acorde do passado, em que a alegria ainda tomava forma dentro de si. Sinfonia a qual era difícil de apagar. “Maria Odila, morreu ou o quê?”A voz continuava a marcar o presente.

-Antes morta do que viva, não, Teresa? –respondeu, levantando a cabeça na direção de uma figura opaca.

Não ouviu mais comentários. Maria Odila deslizou sua mão pela a mesa ao lado da cadeira em busca de seus óculos. Atingiu a armação marrom, pondo-a. Enxergando melhor, reparou que a irmã era mais bonita quando vista sem eles. Guardou para si esse pensamento, escondido atrás de uma contração dos finos lábios, o que assegurava ser um sorriso.

A mulher alta e magra, de cabelos tão escuros quanto os seus, pele clara e mais amiga do tempo, encarcerada em roupas pretas, apenas bateu as mãos num gesto usual:

-Espero que desça logo. Mamãe precisa de companhia.

Maria Odila tirou os óculos e jogou a cabeça para trás, sem nada dizer. Impassível, a outra permaneceu na sua frente:

-Devo constatar que além de cega também ficou surda?

-Constate o que quiser de mim. Cansei disso tudo.

-Disso tudo o quê? Se não faz nada, nem nunca fez?

-Exatamente de nunca ter feito nada. –encarou a escuridão, arrastada pelas pálpebras, melhor do que as memórias.

Olhos cinza aguados, carregados de sentimentos conflitantes e juventude. Faziam parte de um olhar questionador e ao mesmo tempo, confirmador. Sentia em sua alma o que aquelas bolas unidas por cores primárias queriam lhe dizer. E ainda sussurravam ao seu coração a dor de reviver o momento.

Apenas ouviu a porta fechando-se. Um alívio fez seu corpo relaxar sobre a cadeira, depois do nervosismo de ter sempre de estar presa ao que considerava sua infelicidade. Exausta de esperar um fim, o dia em que não mais precisaria ouvir essas vozes que tanto a perturbavam, o dia em que sua alma ganharia descanso ao não precisar mais lembrar-se de levantar da cama, o dia em que a terra tornaria sua última morada.

Sem mais ter que remediar, conformou-se, não pela primeira vez, e, talvez, não pela última. Suas mãos puseram os óculos em seu rosto, enfiando-o no alto do grande nariz para não cair. Com firmeza, apoiou as mãos nos braços da cadeira e ergueu seu corpo todo de uma vez, soltando um urro junto aos ossos. O dia mal começara e já estava neste estado catastrófico. A cada manhã parecia mais difícil acordar bem. Os anos passavam a pesar ao quadrado depois de certa idade. Não tinha escolha, ao menos, via assim.

Os pés pequenos, de extremidades e juntas avermelhadas, enrugados, foram devagar até a cômoda ao lado da porta. Cada passo um peso que se arrastava pelo ranger das madeiras do chão. Pôs os dedos no puxador e tomou impulso. Os anos emperraram aquela cômoda velha, que a acompanhara desde os tempos de menina. Da primeira gaveta tirou algumas peças íntimas brancas e meias. Fechou a gaveta com as duas mãos, quase pressionando todo o corpo sobre ela. Exagerando na força, provocou um pequeno terremoto nos objetos em cima dela. Os frascos de perfume felizmente não caíram. Adorava o vidro colorido de cada um deles, ainda mais o cheiro. Pegou o primeiro. Fechou os olhos e mirou na direção do pescoço, apertando a rosa almofadinha de spray. Nada saiu além de ar.

Podia sentir o cheiro do perfume mais caro que tinha. Pôs junto de tantos outros também comprados na Europa. Abriu os olhos e enxergou-se diante do espelho sobre a cômoda. Ajeitou os cabelos presos num coque alto. De suas orelhas pingavam brilhantes. Em seu pescoço, um mar de pedras preciosas era guardado. Estava pronta, faltando apenas se maquiar. Puxou o batom, sujando sua boca de vermelho.

“A senhora sua mãe pediu que desça logo”, bateram na porta. Maria Odila viu seu dedo contornando seus lábios desfalecidos. Não haviam brincos, nem colar. Estava nua diante do espelho. Os olhos abaixaram-se, quase lacrimejados. A testa enrugou e um mau-humor tomou conta de seu espírito. Enrolou o cabelo num coque baixo. Pegou alguns grampos e enfiou-os até o fundo para que prendessem bem os fios de cabelo mais rebeldes. Do guarda-roupa tirou um vestido marrom. Eram poucos para escolher, já que eram todos iguais no estilo e na cor. Puxou seus sapatos e os pôs sentada na cadeira. Tinha pressa. De óculos, reparou que o couro preto estava por demais gasto e o salto encolhera de tanto usar. A pressa começou a agoniá-la. Podia ouvir Teresa gritando lá de baixo seu nome. Não podia esperar. Ninguém podia esperar. Nessa vida, esperara até demais.

Os degraus rosnavam a cada passo medroso. Deduravam a sua chegada. O papel de parede verde florido pedia silêncio. Pouca luz entrava pelas janelas abertas. Maria Odila não entendia o porquê de tanta soturnidade. O que tanto as pessoas queria esconder? Suas vidas? Seus medos? Seus atos? Temiam quem?

Uma voz rouca e com poder a guiou para a sala:

-Maria Odila! Maria!

Espreitando que nem gato assustado, ela entrou na sala. Estava iluminada, pulsante, como nos tempos passados. Viu que sentada na cadeira de balanço a ler a Bíblia estava a sua mãe. Seu rosto era coberto pela capa negra do grande livro. Apenas duas mãos transpareciam cheias de anéis. O pesado livro foi sendo abaixado aos poucos, até ser sustentado pelos joelhos. Os cabelos estavam escuros, o rosto expressivo e jovem. O tempo recuara. A mãe apertou as sobrancelhas, ordenando a menina a ficar junto de si. Maria Odila foi andando até a mãe, com o medo de que um suspiro seu a perturbasse. Sentou no chão ao seu lado, definhando-se de medo. Suas pequenas mãos apertavam seus tornozelos, quase deixando-os roxo. Não queria levar bronca. Sua mãe perguntou quem foi Maria Madalena. A mente da menina embranquecera de temor de errar. Passara dias decorando a Bíblia e, justamente quando sua mãe lhe perguntara, esquecera. Suava, balbuciando palavras inexatas. Apenas um olhar, um olhar furioso que tudo indicara. A pequena ergueu as duas mãos, comprimindo os olhos. A Bíblia caiu sobre suas mãos. O corpo tremeu de dor e uma lágrima escorreu pelo canto do rosto.

-Segura o choro, menina! Se Jesus foi capaz de agüentar o martírio da crucificação quieto, tu também o farás. Agora leia toda o Gênese para mim em voz alta. A cada erro teu, deverás ler um salmo antes de dormir e me recitá-lo ao acordar.

A voz mal conseguia sair. A Bíblia tremia em suas mãos doloridas, quase caindo delas.

-Mamãe, estou aqui. –anunciou ela, que entrara na sala, como se ainda tivesse que recitar a Bíblia de cor.

Aproximava-se da criatura escondida dos raios solares. Sentava em sua velha cadeira de balanço, tendo sob as mãos vazias a Bíblia fechada. Os cabelos perderam a cor, os olhos mal se abriam e a postura encurvara-se. Mas aquela senhora, por mais idade que tivesse, sempre seria sua mãe. Puxou uma cadeira e sentou ao lado dela. Pegou a Bíblia e a pôs no colo. Suas mãos não mais tremiam, alisando a capa de couro carcomida. Respirou fundo, ajeitando os óculos. Os anos não surtiram efeito a não ser no cheiro de mofo que impregnava aquele lugar. Pigarreou e começou a ler impecavelmente, com as frases quase decoradas em sua cabeça. Às vezes, durante a leitura, espiava a mãe com o canto os olhos.

A velhinha jogava a cabeça para trás e balbuciava de olhos fechados o que a filha falava. Seu espírito era lavado com aquelas palavras de Glória. E achava que se os homens também o fizessem, existiria menos maldade no mundo. Sabia bem que a maldade deveria ser cortada pela raiz. Não permitiria que suas filhas fossem más, ensinando cada vez mais as palavras de Deus. Assim, elas aprenderiam a ser boas meninas.

As palavras pararam suspensas no ar. A velha senhora estranhou, abrindo os olhos. Diante delas, na porta havia parado um homem. Alto, magro, de semblante sério. As sobrancelhas negras e espessas quase formavam uma só, enquanto o cabelo era puxado para trás com fixador. De terno cinza e uma mão no bolso, deu bom dia às duas.

Maria Odila podia vê-lo caminhando em sua direção, sorrindo. Seus olhos miúdos expressavam uma sensualidade que a fazia estremecer, sentir calores, coisa proibida. A pulsação perdia ritmo. Tinha muito pelo qual ter essas quenturas ao ver ele se aproximar. Já fora seu namorado há tempos idos, mas ainda podia sentir as grandes mãos dele enlaçando as suas, acariciando a sua pele em tempos voltados.

-Bom dia, senhoras. –entrou na sala, indo na direção da mãe de Maria Odila.

-Meu dia não está tão bom. –avisou a velha- Minhas costas estão doendo e as juntas também. Essa mudança de tempo não faz bem a ninguém.

-Entendo. –parou por instantes e virou-se para Maria Odila. –Espero que suas costas também não estejam passando por maus bocados.

Ela riu sem graça, acanhada, enfiando a cabeça entre os ombros. Quando se conheceram ele logo notara que ela segurava o riso coçando os lábios. A mãe considerava o riso coisa do diabo e a acostumara a não fazê-lo. Intrigado com aquela moça, que mal conseguia levantar os olhos de vergonha, sentiu que queria conhecê-la mais. Uma simples conversa no banco não era o suficiente. Como gerente, arrumou um pretexto para visitar suas clientes em casa e mostrar as novas propostas bancárias. Na terceira noite não apareceu. Maria Odila não entendeu aquilo. Ficou a noite toda sentada perto da janela a esperá-lo, enquanto lia a Bíblia. Ficava presa às partes de João Batista, nome dele. Foi depois de uma semana, então, que soube. Seu adorado gerente iria se casar. E não seria com qualquer uma. Pedira a mão de Teresa em casamento. Ao ouvir isso da própria boca da irmã, segurou a pressão de uma dor que a partiu ao meio. No jantar de noivado, ficou o tempo todo olhando para o seu prato, a cortar o sanguinolento filé mignon como se cortasse a si mesma. Naquela noite, em que o frio era seu único amigo e o silêncio seu companheiro mais íntimo, só fez uma pergunta ao casal: “Quando vocês se conheceram?” Os dois riram. Maria Odila nem podia olhar na cara deles, batendo com o garfo contra a comida. Explicaram que já se conheciam de vista, mas depois das visitas dele, começaram a se encontrar mais vezes, até que se apaixonaram. O sangue escorria pelo prato, esvaindo da carne.

Atrás dele, sempre atrás, apareceu ela. A sempre desconfiada esposa. A mulher que rira de Maria Odila a dizer-lhe com todas as palavras que nunca se casaria com qualquer homem que fosse. Chegou enfiando o seu braço por debaixo do dele, puxando-o para perto de si. Era seu e ninguém, muito menos a irmã, iria roubá-lo dela. Maria Odila nem se perturbou mais, voltando a sua leitura. No entanto, foi interrompida pela voz de Teresa. Sofregamente, tirou de vista as palavras minúsculas e alinhadas da Bíblia:

-Vamos tomar o desjejum. João Batista tem que ir para o banco.

Definitivamente aquela não era nenhuma novidade. Toda manhã tinham que tomar o café-da-manhã mais cedo por causa dele. E somente por causa dele muitas coisas aconteceram ou deixaram de acontecer. Teresa não quis ter filhos. Queria a atenção do marido só para ela. Não contou isso a ele, dizendo apenas que não podia tê-los. Uma vez chegou a pegar filho, mas correu a um médico e voltou sem filho algum. Maria Odila sabia a verdade, sua língua coçava toda vez que os vinha juntos. Não, não contaria a João. Ele era bom demais para sofrer com as mentiras da esposa.

Levantou-se num só impulso, querendo parecer altiva. Depositou a Bíblia no assento da cadeira e foi para a cozinha preparar o café-da-manhã. Sua cabeça formigava com confusas frases. Suas mãos tremiam e não sabia o porquê. Enfiara-as no bolso e foi então que sentiu. Era frio como a morte. Roliço e sem movimentos. Quando preso em sua mão, não fugia dela. E Maria Odila não queria que escapasse. Na cozinha, mandou que a criada fosse pondo a mesa enquanto colocava o café no bule.

Virou a cabeça para trás para ter certeza que ela saíra. A mão puxou para a luz a verdadeira face que tanto escondia. Preso dentre os dedos, estava um caminho para sua libertação. Seu coração vibrava junto as veias de seu pulso. Os dedos descoloriam de tanto que os apertou. Aos poucos, acostumando-se com a idéia de sua alforria, foi abrindo a mão. Seus olhos tocaram a palma. Deitado nela, um frasco de cor marrom. Não havia rótulo ou qualquer outra coisa que indicasse que o que tinha em suas mãos era uma fuga e ao mesmo tempo um golpe mortal. Abriu o frasco, jogando a rolha, que impedia o rio de líquido correr impune, para longe. O que havia começado dessa vez terminaria. Estava certa que não seria igual a elas. Por que nunca fora que nem elas. Pela primeira vez seria apenas ela e a sua afamada liberdade. Não agüentava mais as pressões, as exigências, a vida que lhe fora sugada a cada minuto. Podia entender o que seu pai passara. Sentia o mesmo que ele. E era a sua vez de fugir delas. Tirou os óculos para enxergar seu mundo como preferia, distorcido, feito de borrões. Aquilo lhe trazia mais paz. Sorrindo a sua forma, contou até dois e tomou o líquido. Fechou os olhos, sentindo um gosto amargo na boca. Era muito ruim. Mas ninguém havia lhe dito que a morte tinha um gosto bom. Via seu pai, deitado no caixão diante dela, rodeado de flores brancas. Ele parecia feliz, livre para poder ser ele mesmo.

Ardência, falta de ar, ardência, falta de ar, ardência, falta de ar, o fraquejar do corpo, a louça caída no chão, entre cacos, seu lugar, falta de ar, ardência, escuridão. “Maria Odila! Maria Odila! Por que a demora?”, gritava a mãe.